B\u00f4leias (kwimbra - dakar)

B\u00f4leias (kwimbra - dakar)

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No átrio da estação ferroviária, deixo-me ficar para trás, observando, senhoras
roliças carregando sacos plásticos. Homens de fato e gravata com a mão nos bolsos.
Estudantes a armar ao pingarelho. Desempregados com ar ensonado que mal saem
dum comboio entram logo noutro. Pseudo-artistas da barba espigada. Larápios
disfarçados de turistas. Turistas disfarçados de larápios. Garotada judia. Adolescentes
com penteados fodasse. Advogados do diabo. Mulheres-a-dias. Trabalhadores do
comércio em mangas de camisa correndo para a saída. Operários fabris em dia de
folga, que vêm para aqui passear junto ao mondego. Encostados pelos cantos da
estação, aquilo que se poderá apelidar de, vagabundos caçadores de
oportunidades. E ainda, meninas mostrando as mamas e ao mesmo tempo botando um
ar de pudor a quem olha. Filhos da puta de bancada. Parvalhões procura da salvação
nos cofres do estado. Zés-ninguém com ar de Golias. Nadadores salvadores
exibindo as suas bóias na bilheteira. Adolescentes do brinquinho e da boina
fingindo que não sabem os horários. Mangalas de fato de treino e sapatilha
Ronaldinho Gaúcho. Totós com ar de graxa pós moderna. Pelintras das calças
rotas e do cabelo desgrenhado com telemóveis escondidos nos tomates.
Intelectuais de esquerda com sapatinhos de cinderella. Senhoras da moda com uns
quilos a mais. Desportistas que mais parecem gorilas telecomandados\u2026 a tirarem
macacos do nariz.



Ainda mais,
pessoas anonimas da sociedade disfarçadas de ursos. Senhores de jaqueta bege e
bigode Carlos Cruz. E eu, esperando que todos saiam, avançando devagar\u2026 e ao
chegar ao átrio, reparo num par de pombos pendurados no ângulo entre o sótão e
a parede, zumbindo. E a partir daqui, podemos visualizar as manchas no toldo da
pequena banca de jornais, do outro lado do átrio, e sim, podemos considerar que
foram pombos os causadores, foram eles certamente, que ao longo dos tempos têm
vindo a cagar sobre esse toldo, e uma vez por outra, os jornais também sendo
borrifados. E já entretanto, podemos ouvir uma voz aguda, ainda que camuflada,
vindo do santuário: trata-se na verdade da jornaleira falando ao telefone, lá
dentro da sua tenda, não lhe podemos ver o rosto, apenas os braços e as mãos
balançando, tocando as revistas que cobrem o postigo. Bom, sigamos em frente.
Já na saída, o sol vai baixo, e o barulho do trânsito sonolento... Um homem que
vende loterias está parado no alto da escada, de bengala e óculos escuros,
balbuciando os números dos bilhetes e mais alguma conversa extra. E sentadas na
escada, uns degraus sua frente, estão três garotas corpulentas com cabelos
cacheados, esvoaçantes. Uma de cada vez, voltando-se para o homem da loteria, emitindo
comentários curtos, ora patéticos, ora pretensamente irritados. Depois,
virando-se novamente para a frente, soltam umas risadinhas contidas,
sussurrando algo entre elas. Mas, quando eu chego mais perto elas calam-se,
comprimindo-se mais uma contra a outra. E do meu lado direito, para lá da
escadaria, vejo agora um miúdo trepando o sinal \u201cproibido estacionar\u201d e nas
costas dele, o rio Mondego, transportando a sua miscelânea untuosa via nenhuma
direcção concreta. O semáforo fica vermelho e o tráfego afunila. Um pequeno
ônibus municipal, amarelo, pára na minha frente. Não mais do que cinco ou sete
pessoas lá dentro. O motorista, um homem de bigode, olha directo para mim e
depois para a porta da estação. Dentro do ônibus, os passageiros são todos
mulheres idosas, ocupando os assentos da frente, comendo a boca, e mais no meio
do autocarro, uma senhor de meia-idade lendo jornal e bocejando. Cá fora, todos
os veículos parados, uns atrás dos outros, como que esperando eu passar naquela
passadeira, mas recuso\u2026



Atravesso
a rua na diagonal e estou já no \u201cLargo das Ameias\u201d. Dois homens de pela morena sentados
na beira do canteiro de flores secas, como que esperando a reabertura do café
Angola, e por trás, na rua que vai dar cozinha económica, umas meninas pernilongas
fazendo-lhes sinais, e eu já não sei se os sinais eram para eles ou eram para
mim. Seja como for, volto para trás e meto pela rua pedonal Adelino Veiga, o
café Florida, mesmo na esquina com a avenida Fernão Magalhães, adequado para
receber senhores provincianos que gostam de petiscar presunto fumado enquanto
bebem as suas cervejas mortas. E na vitrina desta mesma cafeteria, temos algumas
garrafas expostas, e as que saltam mais vista é essas de cor verde com um
rótulo que diz \u201cLicor de Merda\u201d, e por baixo a letras mais pequenas, \u201cmade in
cantanhede\u201d. Aproximo-me mais e vejo que afinal se trata dum licor de leite.
Engraçado trocadilho. Mais frente, um tipo de roupa apalhaçada segura uma
bicicleta pasteleira (nota-se que foi pintada mão atabalhoadamente), o seu
olhar é fugidio, olha volta e compõe a boina enterrando-a ainda mais na
cabeça, dando uns passos para trás e outros para a frente, acompanhando certas
pessoas, e desviando-se de outras que passam mais apressadas sua volta.
Quando o nosso olhar se cruza, ele monta a bicicleta e arranca devagar no
sentido oposto aquele donde veio. Adiante, em frente vitrina da \u201cCasa Sousa\u201d
uma montra composta por xailes e naprôns com bordados very typical diz
\u201cencerrado por motivos familiares\u201d. Logo ao lado a ourivesaria e relojoaria
\u201cAurus\u201d, depois \u201cO Boquêt\u201d, uma florista s escuras, e a seguir a \u201cBoutique dos
Perfumes\u201d com a Shakira e o António Banderas na montra. Em frente, do outro
lado da rua o \u201cEl Dourado\u201d, pronto-a-vestir com saldos de 30, 50 e 70%. Há
calças Mustang \u2013 Levis - Dane - Energie -
Gás - Jack & Jones e camisas Lee.
Roupa para senhores coiso e tal... Mas vamos apreciar os manequins nessa
montra: Um deles, nu, ou melhor nua, sem braços, a olhar para quem entra na
loja. A sua companheira do lado esquerdo tem cabelo preto comprido, forte, blusa
branca rendilhada e calções de ganga curtos, que não passam da brilha, pernão
mostra, como manda a moda\u2026



E do lado
direito do manequim sem braços está mais um, ou melhor uma, com um vestido sem
ombros, de cor parda, ou bege, com umas pregas a escorrer até aos joelhos e
olhar fixo. E ao seu lado uma menina com cabelo curto, caindo em bico sobre os
ombros, emprega uma camisa justa com folhos nas mangas e uma saia com uma
textura de rosas que um homem de peitaço com cabeleira preta a tapar as orelhas
plásticas parece querer apalpar. Homem esse de T-shirt branca ostentando uma
caveira com uma espada que entra num olho e sai no ouvido no lado oposto e calças
de ganga preta, russas, que lhe caiem sobre os pés descalços de unhas
naturalmente plásticas. Isto, mesmo ao lado do \u201cModas Veiga\u201d, agora fechado com
grades corridas, e ao lado um letreiro de grandes letras vermelhas diz \u201cCompra-se
ouro, pratas e jóias\u201d. Em frente, uma casa de tapetes, carpetes e afins chamada
\u201cZé Dibel\u201d. Turistas Italianos deambulam por aqui, parecem interessados não nas
carpetes, nem nos tapetes, mas nos xailes\u2026 E em frente residência \u201cDomus\u201d de
três estrelas verdes, uma pastelaria encerrada para férias. A montra recheada
com pianos plásticos, corta-unhas com a bandeira nacional, patos de barro, um
serviço de chá miniatura, postais com palhaços amarelados, um conjunto de
bonecos do presépio com duas ovelhas suplementares e mais três bonecos campinos
- o do meio com barrete vermelho caído para o lado, os outros dois com chapéu
de abas preto. E um homem carrancudo de camisa branca, calças pretas de vinco,
sapato castanho com uns penduricalhos e óculos de escriturário, passa em frente
\u201cFashion Store \u2013 Amour\u201d e olha demoradamente lá para dentro quase chocando de
frente com um velhote carregado com um saco de cebolas. Logo ao lado a loja \u201cO
Chinês\u201d com roupa feminina e bagatelas para todos os gostos. E segue-se o
pronto-a-vestir \u201cBrittania\u201d com uma montra repleta de vestidos frescos com
cores exóticas, isto mesmo antes de um beco sem nome que desemboca num exaustor
gigante camuflado com sacos pretos\u2026



Um homem de
polo verde, calças brancas e cabelo escovinha entra nas arcadas da \u201cFoto
Coimbra\u201d, diz ele que vem fazer as fotos para a ficha do divórcio. E lá de
dentro sai uma mulher gorda, de camisa vermelha mais-ou-menos transparente,
saia pelos joelhos e sandálias deformadas pelos pés batatudos. Na montra há fotografias
de noivos e noivas deitados na relva de um parque e numa escadaria que vai dar
ao mar. E ao lado da loja de fotografia, uma loja com malas e artigos de viagem
e por cima a \u201cResidência Moderna\u201d com a bandeira do partido comunista numa
janela e uma placa com uma mulher de cabelo azul com franja ruiva na outra,
anunciando que ali funciona um cabeleireiro. Já no andar de baixo, uma loja de
decoração com dois santos Antónios, um com o menino ao colo e outro com o
menino ao ombro. Pode-se ver também a rainha Santa Isabel e a torre da Cabra em
tons Rosa. Andamos mais uns passos e estamos já num novo império do plástico:
uma loja de brinquedos com triciclos em forma de mota; chorões do tamanho
dessas mesmas motas; uma mesa de matraquilhos miniatura; uma guitarra de papel;
a embalagem do jogo do monopólio; bonecos da Playmobil montando dinossauros;
puzzles do Peter Pan e do Tarzan; bonecos Transformers que tanto são prédios
como seres monstruosos, mais não sei quantas barbies com não sei quantos tipos
de cabelos diferentes e do outro lado da rua mais uma placa a dizer \u201cvende-se
ouro \u2013 compra-se prata\u201d e uma mulher especada com a mão tapando a boca aberta. E
mais uma loja de malas e guarda-chuvas com o empregado porta a fumar e a
olhar para mim e eu a olhar para a montra da \u201cLoja Xana\u201d com os vidros tapados
com papel castanho pardo, aquele papel que tanto dá para fazer as contas vida
como para embrulhar postas de bacalhau salgado. E um rapaz também de pele
castanha parda estendendo a mão aos transeuntes...



Já no largo do
Poço do Conde, vindo do restaurante com o mesmo nome, chega-nos um aroma a
frango de churrasco que se arrasta até montra da \u201cModas Bagui\u201d \u2013 camisas, gravatas
e blusas. E por ali está também a loja de roupa para criança \u201cBebé confort\u201d,
donde agora mesmo, sai uma velhota com cabelo branco e blusa azul-marinho
arrastando cá para fora o seu neto, que dá saltos e saltos e teima para lhe
comprarem o carro gigante que se encontra a servir de base para um manequim infantil,
instalado na montra. Já do outro lado da rua, o \u201cSaul Morgado Fecundo\u201d tem as
três grandes vitrinas fechadas com grades. E em frente a esse gradeamento passa
um homem de meia-idade a coçar os tornozelos e logo a seguir vem uma mulher de
vestido amarelo e saltos altos que caminha levantando demasiado os joelhos. Depois
segue-se uma realojaria que também vende canetas finas e mais uma loja de
brinquedos com um pinóquio gigante porta mesmo antes de virar direita para
o Beco das Canivetas, onde um rapaz coiso-e-tal, anda procura de alguma bugiaria
no chão. Alcançamos agora a antiga praça do comércio, e logo na esquina antes
de entrar na praça, são malas tigresas, sapatos de xadrez, camisas de
futebolista (Messi, Cristiano Ronaldo e Zinedine Zidane) pendurado nos buracos
da parede porta de uma loja que vende de tudo, ao que parece. E já aí vem o
pequeno carro escovador de ruas e estamos já na praça velha onde está a haver
uma feira de aboboras e derivados... Ora é aqui que me deparo com os primeiros
conhecidos. Sentados num banco junto a uma cabine telefónica desactivada, estão
os três da vigairada: Kicas \u2013 que alguns apelidem de avozinho punk; Toni \u2013 o
alentejano que faz artesanato com sementes de boi; e Ivan - o ucraniano búlgaro
que já trabalhou como trolha e agora anda a monte - e mais uma serie de pessoas
com o telemóvel inspeccionando as aboboras... E já agora, reparo que atrás duma
das barracas de artesanato está estacionada uma Kavasaky Ninja, e uns miúdos
andam de volta dela. Ao fundo das escadas de São Tiago está um fulano que pinta
retractos a carvão, agora mesmo a dar uns retoques na face da fadista Marisa. Subo
as escadas. Há aqui um grafiti na fachada da igreja de São Tiago que diz:
BIBLIA ESCRITA POR E.T.S. E ESPIRITOS MUITO MAUS.




E já estamos na rua passerelle de Coimbra, a rua Ferreira Borges, uma
rua pedonal: Pessoas andado numa passada não muito apressada, atormentadas pelo
sol da tarde. Mas, contrariando a letargia do momento um gajo mete a correr
pela rua do Crucifixo que vai dar lá em cima capela dos fados onde também já
fizeram raves, ou festas de música electrónica, e aí vai um gajo fugindo não se
sabe de quê. E cá em baixo novamente, a \u201cMango\u201d e os outros pronto-a-vestir chiquérrimos
cá da rua estão s moscas. Apenas a farmácia e os cafés parecem ter alguns
clientes. E mesmo em frente ao banco Millenium, uma rapariga de saia comprida colorida
e cabelo curto, toca violino para as massas adormecidas. Pisco-lhe o olho e
meto logo esquerda subindo pela ruela do arco da Almedina, onde uma figura pintada
na parede, em jeito \u201cvê de Vendetta\u201d, diz \u201cjá apagaram o futuro a mais de
seiscentos e tal\u201d. E mesmo dentro do arco da Almedina o alfarrabista onde já
troquei alguns livros aos quadradinhos... e como é habitual ao passar aqui, ouvem-se
fados de Coimbra bolorentos, pois o alfarrabista vende também souvenires
lamechas ligados ao historial da Universidade de Coimbra\u2026 E um pouco mais
acima, junto estátua da leiteira, ou melhor a tricana, uma loja de discos com
LP\u2019s de rock psicadélico obscuro na montra, figurando por exemplo as capas da
banda italiana Goblin que fez a banda sonora do filme Suspiria, de Dário
Argento. E são turistas chegando agora perto da estátua da leiteira, s
aranhas, e eu acelerando o passo escada acima, toco o carrilhão de sinos
entrada de uma loja de artesanato com figuras de barro pintadas mão e
serapilheira... E em frente ao bar \u201cQuebra\u201d, um puto pendurado no varão das
escadas de cabeça para baixo e uns senhores da burguesia jazzística sentados na
esplanada deste mesmo bar a disfarçar. Mais frente, do lado direito, mesmo
antes da tasca das Ginjinhas, uns editais falam duma excursão a Fátima ou a
Santiago de Compostela e na parede ao lado uma figura com o punho serrado junto
a um sorriso torto com a inscrição \u201cOpen Your Mind\u201d. E já quase ao cimo das escadas
do Quebra-Costas passamos pelos sanitários públicos onde um homem de óculos
fundo de garrafa dorme ao som de uma radio a pilhas mal sintonizado e uma loja
de azulejos com motivos vegetais e faisões verdes e amarelos. E mesmo ao cimo,
no café \u201cSé Velha\u201d, uma inscrição anuncia que \u201chá caracóis e chouriço assado e
choupo do rio e vinho verde\u201d. Ainda no largo da Sé Velha mais turistas
agarrados a mapas a olharem intervaladamente para a Sé e para o mapa que têm nas
mãos. Aí, meto logo pela rua do Cabido, onde fica o \u201cBoémia Bar\u201d, para onde vem
a estudantada de todos os tipos. E ao virar para a Travessa do Cabido, janelas redondas
a meia altura chamam-me atenção, nunca tinha reparado nelas... Depois a
inscrição \u201ca noite eh uma vaca preta\u201d escrito ali na esquina. Mais frente uma
agradável nespereira subindo acima dos muros altos e na fachada mais uma
inscrição dizendo \u201cmulheres unidas contra o autoritarismo patriarcal
capitalista\u201d, e outra que diz \u201cNem Deus Nem Amo\u201d. Sobe-se mais um pouco e mais
uma inscrição insurrecta nas paredes diz \u201cGlobalizemos a Rebelião\u201d. E pronto, já
estamos no vão de escadas com um pica-pau colorido por baixo da república
Bota-Abaixo com um triciclo e uma varinha magica pendurados nas grades de uma
janela. Assim, entramos logo na rua de são Salvador onde alguém se mete a falar
crioulo comigo, e eu respondo em russo. Depois na travessa do loureiro oiço uma
voz de televisão a falar dos países da zona euro e mais a cima entrada da
travessa da matemática vindo de uma qualquer janela do rés-do-chão de um
daqueles prédios degradados oiço o jingle \u201cEntropia Rádio \u2013 oitenta e oito
ponto três éf ém \u2013 uma rádio com grooove mémê\u201d.



E na
parede em frente diz \u201cCoca-Cola matou Sindicalistas\u201d e entra-se na rua da
matemática com as sua característica calçada de pedras negras escorregadias servindo
de passagem para todo o tipo de bois e pessoas que se dirijam República dos
Incas e república Rás-te-Parta e República do Quarenta e o Solar
Quarenta-e-Quatro do lado direito, para quem sobe. E novas inscrições por aqui
dizendo: \u201cBoicota o estado\u201d; \u201cNem guerra entre o povo nem paz entre as
classes\u201d; \u201cFuck you not me\u201d; \u201cLiberdade para a Múmia Abu Jamal\u201d; \u201cMorte
Praxe\u201d; \u201cSe Deus Existisse Teríamos de o Matar\u201d. E mais frente outras
inscrições na parede: \u201cO passos volta para a aldeia da coelha\u201d; \u201cSorri e Luta\u201d;
\u201cNATO: Neoliberais \u2013 Autoritários \u2013 Tecnocratas - Opressores\u201d; \u201cJorge Sampaio =
Américo Tomás\u201d; \u201cA solução para Portugal não é política é esdruxula\u201d; \u201cPraxismo
rima com fascismo\u201d. E finalmente ao fim da rua do lado direito, a República dos
Corsários. Abro logo o portão de ferro ferrugento e entro no átrio. Uma cadeira
de plástico está espetada num ferro junto ao portão. Passo por baixo da
ameixoeira que dá abrunhos e procuro o Aníbal que afinal ainda não chegou.
Aliás o único morador presente na casa parece ser a cadela Ary, já velhota mas
ainda barulhenta. Sento-me no banco de madeira do pátio e enrolo cigarro atrás
de cigarro enquanto olho em redor a tralha espalhada pelo jardim: Um sinal de
stop por baixo do limoeiro com um fantasma desenhado dentro da letra ó; grades
de cerveja a servir de vasos para flores que afinal não passam de ervas; mais
vasos com cactos e cascas de laranja; uma bola de basquete meia vazia e suja de
merda de cão; pedaços de ferro ferrugento e panelas gigantes sujas duma
mixórdia qualquer. E por baixo da ameixoeira, uma mesa de madeira coberta de
folhas secas e copos de plástico ainda com sobras de vinho; e por baixo dessa
mesa, alguns tijolos partidos e pedaços de esferovite enegrecido\u2026 Olhando agora
do outro lado do jardim, junto ao tronco duma árvore pseudo-tropical que parece
uma palmeira mas não é, um assador para churrascos, com ossos ainda, e uma
antena parabólica em cima, com um escadote a servir de acesso. Já na fachada da
casa propriamente dita, por trás de mim, uma tabuleta diz: \u201cPor um outro Abril\u201d,
e ao lado, uma série de objectos pendurados por cima da minha cabeça: coisas
como utensílios de cozinha enferrujados; microfones com a boca aberta; teclados
de computador; pincéis com o cabelo ressequido; um velho leitor de cassetes;
ventoinhas e outros aparelhos escavacados\u2026 E agora já, vindo do exterior,
aparece o Adão, faz um aceno rápido e entra numa porta ao lado da inscrição \u201cOs
Galifões são bufos\u201d. Por cima dessa inscrição uns azulejos azuis com uma santa
qualquer sem cabeça e uns anjinhos tresmalhados.



E pronto,
farto disto, quando já estava pronto para abalar daqui, aparece inesperadamente
o JêPê, mesmo a tempo de me ajudar a beber a garrafa de tinto que eu ali estava
a emborcar sozinho. Aproximo-me e cumprimentamo-nos efusivamente. Com a troca
de energias liberta-se algum pó, mas a justificação é rápida, o homem acaba de
chegar de mais uma festa de trance, desta vez na praia do Palheirão, perto da
Tocha. E não perdendo tempo, o gajo dirige-se logo ao tanque no canto do pátio onde
está a placa que diz \u201cexposição de bruxaria\u201d, e mergulha a cabeça na água com
minhocas e ensaboa-se enquanto lhe falo das vicissitudes do vinho caseiro que tenho
na mão. Assim sendo, descemos praça da república e entramos no jardim da
manga. O JêPê quer apresentar-me umas pessoas. Um grupo de viajantes. Mais
propriamente, trata-se de um rapaz checo com chapéu de Cowboy; uma Italiana de
perna longa; e um grego, chamado Spiros. Travamos amizade, e nessa mesma noite
acabamos dormindo nesse mesmo jardim, bebendo noite fora, fumando e contando
estórias de viagem. O checo, que afinal se chama Milan, já tinha estado na
India, na China, no Vietname e na Tailândia. Valentina, a italiana, esteve mais
pelos países nórdicos, como a Suécia, a Islândia e a Rússia. E Spiros, o grego,
tinha-se aventurado por Africa, mais propriamente Egipto, Etiópia, Mali, Senegal,
Tunísia, Argélia e Marrocos, donde acabava de chegar. Todos os três se tinham
encontrado aleatoriamente em Coimbra, Milan tinha vindo para visitar amigos
cidade do Porto e acabou aqui, porque estava a caminho de Lisboa. Valentina
tinha vindo de Barcelona com um namorado que tinha desaparecido pelo caminho. E
Spiros, tinha passado a ponte de Marrocos para Gibraltar e aqui veio parar
porque foi para aqui que o quiseram trazer. Ou seja todos eles e eu também,
tínhamos já estado por essa Europa fora, Asia e Africa, e por isso decidimos
por consenso que a próxima viagem era para a América do sul. Onde iriamos todos
juntos. E o JêPê dava palpites onde devíamos ir. Talvez Argentina, porque tinha
uns amigos que nos dariam abrigo por lá. Talvez Chile ou Peru, fala-se que os
bilhetes para Lima seriam baratos. Ou talvez Brasil onde podíamos ir ter por
mar, se fossemos primeiro para as ilhas canarias, era possível apanharmos
boleia em Yachts, uma vez que já tínhamos ouvido algumas histórias sobre viajar
boleia em veleiros do Tenerife até ao Brasil, passando por Cabo Verde, ou até
tentar arranjar trabalho em cruzeiros de turismo, seria uma opção. Mas na
verdade depois dessa noite não voltei a ver estes camaradas, quando acordei
todos tinham desaparecido, não sabia se tinham ido prás Canárias sem mim, ou se
tinham voltado aos seus países, o que é certo é que ninguém sabia deles, tinham
desaparecido por completo, e todos os seus pertences também.




Assim acabei indo parar a Marrocos com o JêPê. Atravessamos de barco em
Tarifa e ele desapareceu logo nas montanhas assim que o barco aportou. Já eu, uma
vez em Tanger, s voltas, acabei num mercado de rua, o Grand Socco, uma praça
numa das colinas centrais da cidade, o confluir da rue de la Plage, a rue d\u2019Italie,
a avenue Sidi Bou Arraquia, a rue Sidi Bouabid, a rue d\u2019 Anglaterre e a rue de
la Liberté. Aliás, nessa praça, enquanto tropeço em velharias e bugigangas expostas
no chão empedrado em volta do fontanário, encontro-me com um grupo de jovens
franceses que estão ali a caminho do Gnaoua Festival, um festival de música étnica
a acontecer no sul de Marrocos, em Essaoira, antigo Mogador, e acabamos sendo
guiados para a fina flor da Medina, somos hospedados num género de hostel que
eles chamam aqui de Riad, ou seja uma hospedaria género pequeno palácio com uma
área aberta (ajardianda) no meio do edifício e quartos em volta. Assim, no dia
seguinte acompanhei os meus amigos franceses na sua excursão rumo a sul, por
insistência deles, mas me acabei fartando-me das suas patéticas conversas
primeiro mundistas e abandoei o barco a meio, assim, fiquei na praia fumando
kif com pescadores locais até dar em doido. Uns dias depois conseguiria
desenvencilhar-me dessa praia, donde era possível avistar a ilha da Madeira,
diziam eles, e fiz-me estrada na direcção oposta ao mar\u2026.



Entretanto, já meio do nada, seguindo ao longo
duma estrada de asfalto gretado, acabei apanhando boleia numa carrinha
carregada de botijas de gás que ia distribuir a sua carga num vilarejo qualquer
entrada do deserto. Sou largado por aí e caminho já nas dunas. Ao cair da
noite levantam-se redemoinhos de areia e ouvem-se como que rãs cochilando, o
que deve ser uma ilusão, mas uma ilusão agradável... E medida que a noite se
torna mais funda as inúmeras estrelas que polvilham o céu tornando-se cada vez
mais gordas, depois passam nuvens, deixa de se ver parte dessas estrelas, e
assoma um vento gelado, as luzes no céu começam a perfurar as nuvens, quais
estrelas cadentes, mas depois fica ainda mais escuro, mais frio e mais ventoso,
e eu por ali deriva, sendo engolfado por esse turbilhão de areias movediças.
Caio na área, rebolo e volto a levantar-me varias vezes. Depois reparo que as
nuvens desapareceram, e o que eram estrelas transforma-se em algo diferente, como
que números decimais faiscando\u2026 Equações\u2026 Raízes quadradas\u2026 zeros e uns e mais
zeros e mais uns, zeros mutantes, transformando-se em... cabeças rolantes ou\u2026
que porra é essa afinal! Pergunta o ego. Parece a tela dum mercado de acções\u2026 E
o vento ficando cada vez mais oblíquo\u2026 E s tantas, há vultos em ao meu redor,
já... E eu deixo-me abarcar nesses turbilhões de areia. A tempestade empurrando-me
daqui para além, como quer\u2026 e eu, ou a minha pessoa, já não se sentindo pesado
como antes, mas os meus olhos ainda feridos e as equações matemáticas inscritas
no céu de chumbo, continuam como que, a aproximar-se\u2026 Ou sou eu que estou a
ficar paranóico? Estúpido? Ainda assim tento proteger-me na parte detrás das
dunas, mas o vento vira constantemente, e suga-me como quer, por isso tenho que
correr, antes de voltar a cair e me sentir a afundar... Corro agora de olhos
fechados, mas s vezes tento abri-los para ver se estou chegando perto das
torres ou não, essa é minha última esperança, e sim, por deus, Ala-Ala, as
torres, parece que estou conseguindo agora... e de uma dessas torres, vindo em
direcção a mim, um vulto fantasmagórico embrulhado no vento, escuto o seu
murmúrio \u201co Ciclope sou eu. O fogo primordial soprado pelo anjo sonâmbulo\u201d.



Acontece
que, depois dumas fracções de segundo a cair por tuneis de luz cega, logo
desemboco naquilo que me parece ser o escorrega de um aquaparque e vou cair em
cheio, de boca aberta, numa piscina com água que não me dá mais que pelos
joelhos, qual oásis, e cuspo essa água contaminada com chichi de fedelhos e
pozinhos elaborados em laboratórios, e logo aí os diabretes se põem todos dando
gritinhos histéricos minha volta, escarnecendo da minha pessoa com toda a
energia tresloucada que têm para oferecer, e vejo eu ainda indivíduos de
turbante, falando línguas berberes, apontando o dedo a mim e não a eles. Tento
ainda levantar-me mas tenho o corpo tão dorido que não consigo e os anões
voltam a empurrar-me para a água e atiram-se logo todos para cima de mim como
se me fossem comer, chego mesmo a pensar que me querer arrancar a cabeça ou
algo do género, mas o que eles querem na verdade é abraçar-me, e abraçam-se a
mim com toda a força em várias zonas do corpo. Portanto, todos juntos formamos
uma espécie de monstro gigante saído dum oásis mitológico, uma superpotência
pós moderna, soltando gritinhos de guerra e barafustando em volta e logo a
seguir vêm os nadadores salvadores tentar revolver a situação, e medida que
acordo me vou apercebendo, que afinal não são nadadores salvadores mas sim elementos
pertencentes caravana do Rally Paris-Dakar, são pilotos e mecânicos equipados
com apetrechos coloridos e capacetes, e outros indivíduos saindo de camiões com
antenas parabólicas instaladas no tejadilho, oferecendo-me já respiração boca a
boca, e passado um pouco, estou recuperado e embarco com eles nos seus bólides\u2026
Atravessamos o deserto ao som de música heavy metal e partilhamos estórias
escabrosas sobre serpentes voadoras alimentadas a diesel, e quando chegamos a
Dakar sou recebido como um herói pelos jornalistas internacionais, mas fujo de
tudo isso e vou na direcção da praia, encontro refugio na cabana de um pintor
de calabaças.

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