BOLEIAS (Oporto - Istambul)
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Ainda ontem estava no Porto, na ribeira, a
comer tremoços, e já estou na Galiza, em Vigo, a tocar concertina na rua, de
chapéu aberto no chão minha frente. E lá para o fim da tarde chegam dois
maganos, meio emborrachados, poem-se todos esticados minha frente, a olhar, a
sorrir e a dessorrir, fazendo cara de maus, cara de troça, e trocando
comentários sussurrados entre eles. Portanto, a certa altura, o mais finório chega-se
já mais perto de mim, a praguejar, e vem oferecer-me vinho a granel, enquanto o
outro, mais gorducho, senta-se logo no chão minha beira, sem eu reparar, a
mandar vir com quem passava. Ou seja, puseram-se os dois a dizer baboseiras e a
tentar arrematar o meu toque, como quem canta. As tantas, um já dançava com a
mão no peito e o outro, o mais entulhado, de barba russa, apenas ria, rebolando
no chão, empatando os transeuntes. Assim, analisando a coisa, o encavacado de
cara devia estar na casa dos seus trinta e poucos anos, o outro devia ter um
pouco mais. E entretanto o encavacado de cara me dando ordens já, me mandando
avançar ou recuar com o fole; e eu, entendendo o seu anseio, acabo
condescendendo, ou seja, queria ele que eu tocasse com mais pausa para ele
poder também entrar na zurrapa com a sua voz de pintassilgo, e assim, estou já
nos preparativos para o toque da desgarrada, ou seja, vou tocando só com a mão
esquerda, apenas os baixos, mantendo aquele ritmo ternário espécie de valsa trocada
e dando apenas o arremate nos botões da mão direita quando o fole ficava
inteiramente aberto ou inteiramente fechado e era preciso virar o fole, ou seja,
a revienga. Porque assim dessa maneira, dava mais espaço para a voz entrar, eu
só tinha de manter o ritmo.
E agora, esse
tal escavacado de cara, entra logo a fazer-me perguntas sem cabimento e a
chamar-me \u201cputo tipóias\u201d eu a responder-lhe como posso, enquanto o outro, sentado
no chão nossa beira, vai chamando de \u201cbaca louca\u201d a qualquer um ou uma que por
aqui passe a esta hora, mas oferecendo imediatamente um copo ou gargalo a quem
fizesse por depositar uma moeda no penico nossa frente. E mais pinga menos
pinga, lá fui eu obrigado a acertar o toque\u2026 agora, virando-me já para esse de
cara mais tisica, dou o sinal com aquele movimento de queixo. E ele entende
logo, enchendo a boca de não sei que ar devassas, entra a toda a pressão,
chamando não sei quantos nomes a rimar a quem aqui passa e virando-se entretanto
para o seu sócio, a disfarçar, como quem conhece as técnicas da desgarrada. Ou
seja, aquele discurso misto, meio cantando meio falado meio praguejando, que
vai mais ou menos assim: \u201cPois estamos rondeados de porretas rodidos e de marretas
podridos\u2026 é suínos sovinas e damas bacocas\u2026 é símios nauseados e monos
monolíticos, e quem vem baila e vai na travessa\u201d. Depois entram rimas sobre a
panadería de Aljubarrota, Alcácer Quibir e o Sancho Pança a cavalo num pónei
diminuto. Fala ainda de jamón-jámon e de senhoras desnudas com bigode de
farinha e colorau e tinhosos e corjas repelentes e canalhas filipoyas. Invocam-se
zorras barraganas e asquerosas místicas não sei quê. Faz-se ainda referência ao
vinho verde com aipo e políticos panascas e o el sagrado corazón de la virgem
Duda e por aí fora. Coisas do género. Até uma pessoa se fartar. Até não haver
mais vinho nem moedas caindo e a voz começar a falhar. Portanto, sou eu o
incumbido de guiar o automóvel, um Rover GSI MK1, um pouco compridito. A minha
missão era trazer os nossos artistas de volta ao presépio, e não podia falhar.
No banco de trás estava já o nosso amigo pançudo, todo atravessado, resfolgando
e ronquejando; tinha sido ele quem tomou conta do penico das moedas durante o
concerto-arraial. E ao meu lado, o pendura é dono deste automóvel, aí está ele,
também de olhos meio fechados, mas ainda praguejando sobre qualquer coisa que
já não interessa.
Passamos a
fronteira. Atravessamos o Minho como quem atravessa as colinas da Golegã de
Valença a Mirandela, onde abandonamos o nosso Sancho Pança, numa ribanceira,
ainda a ronquejar. Voltamos depois para a Ribeira de Pena em direcção Póvoa
do Lanhoso onde morava o nosso amigo camarada cantor de desgarradas e
proprietário deste Rover GSI com mais de cem mil quilómetros no pêlo e alguns
problemas nos travões e correia da embraiagem, ao que parece. Ou seja, fico a
saber que o nosso canta-autor é divorciado e mora numa quinta onde tem a sua
oficina de ferretaria e mais uns quantos barracos adjacentes, por ele mesmo
construídos. Assim, chegados ao local, prontamente sai o gajo do carro para vir
abrir o portão que mais não é que um pau atravessado a fazer serventia e logo
que a estaca é removida ele manda-me entrar com a viatura. Dito e feito. Quando
saio eu para a enseada já estou rodeado de cães enormes que parece que me
querem comer, mas ele grita com eles e manda-me ter calma e para eu não me
mexer. E assim que ele recolhe os cães eu pego logo na mala da concertina e aproveito
prontamente pra bazar dali. Pois não quero mais saber da sua estória de
divórcio, nem dos filhos internados no CAT, nem da sua ex-mulher, nem desta sua
oficina canina, nada. Faço-me estrada a penantes. São só vinte quilómetros
até Braga. Ao romper da manhã já avisto o Bom Jesus, atravesso o bairro da
consolação, a avenida Dom João II, e sigo numas ruelas por trás da Makro em
direcção ao centro da cidade. Mas acabo fazendo uma pausa em frente ao
tribunal, sento-me no muro da fonte-lago na praça, mirando a fachada azul
esbatido do edifício, penso no tipo de criminosos que hoje aqui vão ser
julgados: um romeno, uma brasileira e um ucraniano, envolvidos num caso de
burla ao estado. Mas que tipo de burla? Ainda não há quase ninguém por aqui. O
café atrás de mim está ainda fechado, mas a menina já anda a limpar as mesas,
faço-lhe sinal, mas ela não responde. Viro costas menina e chego-me novamente
aos tanques das fontes decorativas da praça onde logo mergulho a cabeça. Lavo o
rosto e massajo o cérebro. Dai a pouco já estou nas escadarias do centro
distrital da segurança social a olhar as arcadas. Um sem-abrigo aborda-me e
pede-me um cigarro, dou-lhe uma pedra que tinha no bolso, e ele fica a olhar
para aquilo. Sigo pela avenida 31 de Janeiro e alcanço o jardim da praça da
república, onde descanso mais um pouco, deitado na relva. Quando me levanto já
o sol vai alto e estou rodeado de pessoas domingueiras. Peço indicações a
todos, como é que se chama o presidente da Guiné; onde ficam as Fontainhas; o
nome do bispo mais importante de Braga; o que é que uma pessoa pode fazer
quando não consegue dormir, ou seja, quantas vezes é preciso gritar o nome da
nossa boa estrela para que aquilo que queremos realmente nos caia do céu; e pergunto
ainda, se alguém ali conhecia um tal de Adolfo Luxuria Canibal. Mas ninguém
conhece. Ainda assim obtenho algumas respostam em relação s outras perguntas e
ainda algumas moedas para tomar o pequeno-almoço\u2026
Dirijo-me portanto ao Braga
Shopping, só para ver se há alguma coisa que vala a pena roubar ou reciclar.
Mas dai a pouco já estou porta da central de camionagem a pedir dinheiro
novamente. Uma senhora bem aprumada paga-me o bilhete para onde eu quiser. No
trajecto conheço um moço cabo-verdiano a trabalhar num hotel no Gerês. Trocamos
galhardetes. Depois estou em Madrid, na Plaza del Sol, depois estou em Cuenca,
depois estou em Alicante, e passeio-me agora já na avenida em frente praia,
travo conhecimento com um magano que anda por ali a arranjar estacionamento
para carros, um gajo bem-posto, nada com pinta de vagabundo, e fico a saber que
o gajo é de Figueres, a terra do Dali, o pintor, tento falar-lhe nessa
personalidade, mas ele diz-me logo que não lhe interessa essa figura, acha o
seu conterrâneo um bronco com a mania que era mais que os outros etc. Depois conheço
um francês na praia, meto-me com ele ao ver que está a ler um livro dum
escritor que conheço, o André Gide, falamos um pouco sobre este autor e sobre
literatura francesa, mais propriamente sobre autores como Mallarmé, Paul
Vallery, Guillaume Apollinair, André Malraux, Gilles Deleuze, etc. E ele,
impressionado com o conhecimento que eu tenho sobre os escritores do seu país,
acaba por convidar-me para jantar no seu apartamento, e o manjar é gambas picantes
com ananás e alho-porro. Portanto, depois da janta acabo dormitando no sofá
ouvindo uma espécie de musica clássica-romântica-experimental-moderna. Noite
fora, permeio a cidade duma ponta a outra sem fazer perguntas, dirijo-me
ao báratro, mas para la chegar há que atravessar um género de bastio. O cheiro
a resina refresca-me mente e o som da caruma a estalar faz embotar um
certo tom angelical entorpecido.
Assim, desde
logo, decido-me a arrancar a roupa ao vigário. Portanto, nu, rebolo agora sobre
tojos e giestas de olhos fechados, espinhos penetrando na pele, nervos e
fantasias; o corpo polvilhado de riscas linfáticas equívocas, qual mapa astral
em segundo plano. Agora, sou um cometa e faço amor com a serra pelada, vou
parir uma montanha, ou não. Escondo-me na fenda de pedras calcárias,
esporrando-me sobre a musganhada em valeiros inóspitos, e metendo os tomates em
boca alheia. Visto-me na fuga. Vou apanhar o autocarro. E uma vez lá dentro,
pego logo um jornal incompleto por ali caído e ponho-me a ler a coluna da
política internacional. Diz assim: "Los seres humanos tienen un sistema
nervioso autónomo que en realidad consta de tres subsistemas separados... el
sistema nervioso parasimpático, el sistema nervioso simpático y el sistema
nervioso entérico... El sistema nervioso entérico ha sido descrito como una
especie de segundo cerebro, que se comunica con el sistema nervioso central a
través del sistema parasimpático, via nervio vago... y el sistema nervioso
simpático. Sin embargo, estudios con vertebrados muestran que cuando se corta
el nervio vago, el sistema entérico sigue funcionando... saber que el sistema
entérico no solo es capaz de autonomía, sino que también influye en el
cerebro... De hecho, alrededor del noventa por ciento de las señales que pasan
por el nervio vago no provienen de arriba, sino del sistema entérico... y es
por eso que muchos lo consideran como un cerebro de respaldo centrado en
nuestro plexo solar... nuestros instintos no son fantasías, sino señales
nerviosas reales que guían gran parte de nuestras vidas". E eu penso para
comigo: As nossas entranhas têm interesses. E continuo a ler: \u201cEs nuestro
nervio vago el que proporciona la puerta de entrada entre las dos partes del
sistema autónomo... El nervio vago actúa como un bus de datos bioinformacional
que dirige impulsos que van en dos direcciones. Desde el vago El nervio actúa
como un mediador, no debería sorprendernos que el funcionamiento deficiente de
este nervio pueda conducir a tantas condiciones y problemas diferentes...
Algunas enfermedades neurológicas en realidad surgen del intestino y se
diseminan al cerebro a través del nervio vago... El nervio vago es el
comandante en jefe cuando se trata de tener gracia bajo presión. El sistema
nervioso autónomo está compuesto por dos sistemas polares opuestos que crean un
\u201ctira y afloja\u201d complementario, permitiendo que su cuerpo mantenga la
estabilidad interna de la hemostasia... El sistema nervioso simpático está
equipado para acelerarlo como el acelerador de un automóvil... prospera con la
adrenalina y el cortisol y es parte de la respuesta de lucha o huida... El
sistema nervioso parasimpático es el polo opuesto... El nervio vago es el
comando central para la función de su sistema nervioso parasimpático... pero
infelizmente, las respuestas del reflejo nervioso pueden volverse en contra de
ese nervio para pasar de ser un amigo a un saboteador ... "
O autocarro pára e
eu saio para a rua, ainda a ler o jornal, agora traduzindo para vocês: "O
nervo vago é conhecido como o nervo errante porque tem vários ramos que
divergem de duas hastes grossas enraizadas no cerebelo e tronco cerebral que
vagueiam para as vísceras mais baixas do nosso abdómen, tocando nossos corações
e a maioria dos órgãos principais ao longo do caminho. Ele serpenteia por todo
o caminho até barriga, espalhando fibras para a língua, faringe, cordas
vocais, pulmões, coração, estômago, intestinos e glândulas que produzem enzimas
anti-stress e hormônios como acetilcolina, prolactina, vasopressina,
ocitocina... Influenciando a digestão, o metabolismo e a resposta de
relaxamento... O nervo vago usa o neurotransmissor acetilcolina... Se nosso
cérebro não consegue se comunicar com nosso diafragma através da liberação de
acetilcolina do nervo vago, você vai parar de respirar. O Botox é uma
substância tóxica que tem o poder de danificar o sistema nervoso e desligar o
vago sistema, podendo causar a morte... ou seja, o mercúrio é um metal pesado
que bloqueia a acção da acetilcolina, o neurotransmissor que passa o impulso
nervoso do nervo vago para os músculos cardíacos... Tanto a acetilcolina como
os receptores nervosos nos músculos cardíacos contêm proteínas tióis... Quando
o mercúrio se liga proteína tiol nos receptores dos músculos cardíacos e na
acetilcolina, os músculos cardíacos podem não receber o impulso eléctrico do
nervo vago para a contracção... O mercúrio se acumula nos músculos cardíacos e
nas válvulas cardíacas, causando danos ao se ligar s proteínas de tiol. Assim,
os tiques nervosos frequentemente observados em indivíduos autistas podem
reflectir uma estratégia comportamental que ocorre naturalmente para estimular
e regular um sistema vagal que não está funcionando de maneira eficiente... A
população em geral tem sido altamente contaminada com o mercúrio usado nos implantes
dentário que os dentistas normalmente colocam apenas a alguns centímetros do
cérebro... Além disso, mais de três mil toneladas de mercúrio são lançadas na
atmosfera a cada ano, contaminando toda a biosfera do nosso planeta, mas o
governo absurdamente se preocupa mais com as emissões de CO2, em vez da enorme
quantidade de mercúrio neurotóxico..." E posto isto, enquanto caminho
pelos subúrbios da cidade, penso para comigo mesmo nesse mercúrio perdido na
atmosfera que está bloqueando o sistema vago e que, por sua vez, está afectando
a conexão do coração com o cérebro e desencadeia a indolência e o autismo nas
pessoas\u2026
Agora estou já em alto
mar, e sigo no topo de um navio de passageiros, é noite e corro para cá e para
lá no tejadilho desse navio, mirando as estrelas no céu. Tento identificar a
estrela mais brilhante, mas não tenho bem a certeza qual será, há uma que
parece bambolear-se, é intrigante, como se quisesse comunicar alguma coisa,
permaneço atento, e sem notar, aparece no tejadilho um homem mais velho de
casaca e oculinhos, chega-se por trás de mim e começa a falar assim num misto
de espanhol, inglês e francês: \u201cAquela ali é que é a Sirius Alpha, que faz
parte da constelação Canis Major, uma estrela muito luminosa, que pode ser
vista a partir de qualquer ponto da terra. Sírius sempre foi muito importante
no céu nocturno e é fruto de um significado muito especial dado pelas mais
diversas culturas. Recebeu cultos astrólatras sob a alcunha de Sótis no Vale do
Nilo do antigo Egipto, muito antes de Roma ter sido fundada\u2026 Diversos templos
em sua honra foram erguidos de forma a permitir que a luz de Sírio penetrasse
por um óculo até s aras internas\u2026 E crê-se que o calendário egípcio seria
baseado na ascensão helíaca de Sírio, a qual ocorre um pouco antes das cheias
anuais do rio Nilo e do solstício de verão\u2026 Já na mitologia grega, consta que
os cães de caça de Orion teriam ascendido aos céus pelas mãos de Zeus, tomando
a forma da estrela Sírio ou das duas constelações, o Cão Maior e o Cão Menor...
Os antigos gregos também associavam Sírio ao calor do verão, apelidando-a de
Seirios, que é geralmente traduzida como \u201ca escaldante\u201d. Essas associações com
o verão e o mormaço explicam, por exemplo, a origem da expressão popular \u201ccalor
de cão\u201d\u2026 Na astrologia da Idade Média, Sírio era a estrela fixa de Behenia,
associada ao berilo e ao junípero, com simbologia cabalística catalogada por
Henrique Cornélio Agrippa... Síria era conhecida no antigo Egipto como Sopdet
ou Sótis, e está registrada nos anais astronómicos mais antigos dos egípcios...
Durante o Médio Império, a base do calendário egípcio foi a ascensão helíaca de
Sírio\u2026 ou seja, o dia em que ela se tornava visível a olho nu pouco antes do
alvorecer e estando suficientemente afastada do brilho do sol... Este evento
ocorria antes da inundação anual do rio Nilo e do solstício de verão, após um
hiato de setenta dias no céu... O hieróglifo para Sótis é uma estrela e um
triângulo\u2026 Sótis era relacionada com a deusa Isis, enquanto o período de
setenta dias com a passagem de Isis e Osíris pelo tuat, o submundo egípcio...
Os gregos da antiguidade observaram que a aparência de Sírius poderia anunciar
um verão quente e seco, e temeram que isso fizesse as plantas murcharem,
enfraquecesse os homens e estimulasse o desejo nas mulheres, por causa de seu
brilho. Foi ainda observado que Sírius cintila mais nas condições meteorológicas
instáveis do início do verão... Para os observadores gregos isto eram emanações
de influência maligna e pessoas que sofressem de seus efeitos eram apelidados
astroboletos ou \u201cos atingidos pelo mal da estrela\u201d... A estação seguinte da
aparição da estrela foi chamada de \u201cDias de Cão do verão\u201d\u2026 E os habitantes da
ilha de Ceos no Mar Egeu ofereciam sacrifícios a Sírius e a Zeus para trazerem
brisas refrescantes enquanto aguardavam a aparência com que a estrela
reapareceria no próximo verão... Se aparecesse fraca então emanaria pestes, do
contrário traria boa sorte\u2026 As moedas recuperadas do século III antes de Cristo
mostravam cães ou estrelas cercados de raios, ressaltando a importância de
Sírios. Os romanos celebravam o poente helíaco de Sírios por volta do dia 25 de
Abril, sacrificando um cão com incenso, vinho e um carneiro para a deusa
Robigalia para que as emanações não trouxessem a ferrugem do trigo para as
plantações\u201d, dito isto, foi o senhor professorzinho de história que me pagou o
jantar, naquela noite, e uma vez mesa, ficamos falando sobre coisas patuscas.
Dias
depois, desembarco eu numa ilha qualquer do mar mediterrâneo, e depois de
algumas horas caminhando pela praia deserta, olhando o céu, pensando ainda nas
estrelas que o senhor professor falava a bordo do navio, e s tantas é já
madrugada e avisto humanos, ou seja, um grupo de pescadores em tronco nu
trabalhando numa enseada, vão preparando as redes antes de embarcarem. E ao que
parece que não notam a minha chegada. Só quando chego mesmo ao pé deles, e digo
\u201cKalinychta Kaliméra Andrón!\u201d, é que os pescadores se viram, encarando com
alguma estranheza o meu porte, de lacinho ao pescoço, chapéu de coco e unhas
pintadas, e perguntam logo com ironia, \u201cO tourístas, oi kápa tha kánoun gámo í
ti?", o que quer dizer algo como, \u201có turista feijão-frade vais aí algum
casamento ou quê?\u201d. E respondo eu do seguinte modo: \u201cVou vou sim senhor, vou ao
casamento de Oceanus e Tétis e vocês serão testemunhas\u201d; \u201cAh é! Bom
estrangeiro! E como vais? A caminhar pela areia lá vais ter?\u201d; \u201cnão, preciso
que vocês me levem nessa vossa barca\u201d; \u201cmas olha lá tu, vlákas\u2026 a união do Oceanus com a Tétis já lá vai há
milhões de anos\u201d; \u201csim, há milhões de milhões de milhões\u201d, completa o outro
pescador. \u201cMas, se queres saber, quem anda ainda por aí são as chamadas
oceânides, já eu encontrei algumas\u201d; \u201cvocê quer dizer, as filhas dos filhos dos
Titãs?\u201d; \u201cSim, quando os titãs perderam a batalha contra os deuses do Olimpo,
foram encerrados no Tártaro, diz-se, e lá têm permanecido e lá têm procriado\u2026
são mais de três mil irmãs\u201d. \u201cMas são todas mulheres?\u201d, \u201cnão-não, também há
outro grupo de três mil Titãs masculinos, mas esses estão mais metidos nos
rios\u2026 e outros que nem são masculinos nem femininos, mutantes, ou talvez,
apenas conceitos obscuros que temos escondidos no nosso cérebro\u2026 os titãs estão
por todo lado...\u201d. \u201cHum, e já agora, desculpe lá perguntar, quais foram os
titãs que você encontrou por aí em alto mar?\u201d E aqui o homem das redes faz uma
pausa no trabalho antes de iniciar a nova narrativa. \u201cComo muitos meus
companheiros, alguns desaparecidos, já encontrei a Calypso, essa víbora do mar
mora em cavernas de pequenas ilhas rochosas, e com certeza que não há uma só,
há muitas! Foi ela que seduziu Odisseus, ou melhor Ulisses, e o manteve cativo
durante longos anos, pois é, apareceu-me essa besta ainda eu era novo,
encalhou-me o barco entre duas grandes rochas em alto mar, eu não queria
acreditar no que via, pois claro, mas estou lembrado, tinha uma cara jovial a
bichana, mas uns olhos muito encovados, e quase não tinha mamas, e os cabelos
entre as pernas chegavam-lhe aos joelhos, então foi assim, mandou-me entrar na
sua caverna e prometeu-me a eternidade mas não me seduziu, não gosto de
mulheres sem mamas, portanto estava a cair a noite mas ainda consegui
desenvencilhar-me das rochas e fazer-me novamente ao mar, tive sorte, não olhei
para trás mas ouvia assobiar, e que bem que assobiava, nunca me hei-de
esquecer, mas sei, uma pessoa s vezes endoidece, tanto tempo sozinho no meio
desse mar, mais o Tsikoudia (bagaço)... Agora
fico em terra, não entro mais nessa estórias.\u201d
E eu, em
conhecimento de causa, intervenho assim, \u201cCalypso é na verdade um género
musical das caraíbas que juntamente com o Mento da Jamaica e o jump-blues dos
Estados-Unidos influenciou o aparecimento do Ska\u201d; \u201cAh estranho dum raio,
pareces uma enciclopédia musical, mas vamos lá ver, e os Ciclopes conheces?\u201d
diz um tipo de pestanas estranhamente longas e sobrancelhas grossas, e eu meio
na tanga, respondo-lhe assim: \u201cHum, os ciclopes, que género é isso? Gótico?
Indie? Folk? Trance? Heavy-metal?\u201d; \u201cNão faço ideia do que está para aí a
arengar, estou a falar dos ciclopes as criaturas gigantes de um só olho na
testa...\u201d; \u201cAh sim claro, eles andam aí...\u201d; \u201cAh pois andam... Mas já te
cruzaste com algum?\u201d; \u201cPor acaso não... E você já?\u201d; \u201cEu tenho o sangue ciclope
a correr-me nas veias meu rapaz!\u201d; \u201cOh... Então porque é que tem dois olhos na
cara e não três?\u201d; \u201cUma coisa é o que vês, outra é a realidade das coisas\u201d,
\u201cPois também tem essa... Mas se não acreditar no que eu vejo vou acreditar em
quê?\u201d; \u201cAcredita no que eu te digo - os ciclopes são os primeiros descendentes
directos do céu e da terra, ou seja de Urano e Gaia. Apareceram primeiro três,
assim como os deuses indianos Shiva, Brama e Vishnu, eram eles Arges, o
forjador de raios, Brontes, aquele que odiava, e Estéropes, o relâmpago. Esta é
a primeira geração de ciclopes... Urano, senhor dos céus, trancou-os no
interior da Terra, com seus irmãos, os Hecatonquiros... gigantes de cem braços
e cinquenta cabeças... Gaia incitou-os a apoiar a guerra travada por cinco dos
seis titãs, também seus filhos com Urano... Isto com o propósito de tomar o
trono do pai que, na época, governava o céu. Os titãs venceram e os ciclopes
foram enviados novamente para o abismo do Tártaro, condenados a dormir um sono
eterno... Injusto não é? Mas na verdade nem todos dormem, as ninfas oceânides
que falávamos há pouco, foram as responsáveis por acordar os ciclopes, ou seja,
copularam com eles e dai gerou-se outro tipo de seres... e alguns desses seres,
habitantes de ilhas longínquas, copularam com marinheiros e é dai que
descendemos nós... Talvez aquilo que chamam a Atlântida fosse o território dos
da minha linhagem... Um cruzamento de ciclopes, titãs e humanos... ou homens...
seja lá o que isso for...\u201d Assim finaliza o pescador invitando-me já para
dentro do seu barco. E eu subo logo. E pronto, não tarda nada aí entramos nós
pelo mar alto adentro, caça dessa tal mitologia mitocôndrica, coisas do
género\u2026
Passado uns dias
estou em Istanbul. Movo-me agora para cá e para lá ao longo dum estreito
corredor num pequeno apartamento na orla de Kad\u0131köy, um bairro mais liberal e
económico do lado Asiatico da cidade. Portanto, o corredor é, na verdade, uma
sala improvisada com apenas um sofá onde estão instaladas duas garotas
voluptuosas, uma comprimida contra a outra. Ambas sentadas com as pernas
cruzadas, conversando com entusiasmo e ambiguidade, rindo nervosamente, e fumando
longos cigarros, sem parar, lançando ainda, de vez em quando, olhares perversos
na minha direcção. Mas eu finjo que não estou aqui, nem estou interessado em
suas fofoquices sobre ex-namorados e futuras conquistas. Meus olhos viajando
agora através dos muitos rabiscos e grafitis nas paredes deste corredor. Reparo
numa frase, como que saindo duma boca com dentes bicudos: "Evde kus,
dünyada kus, her yere kus", o que traduzido (com a ajuda da rapaziada), queria dizer algo como \u201cVomite em casa, vomite no mundo,
vomite em toda parte" e no lado oposto dessa boca vomitadora, está um
retracto de Mustafa Kemal sendo abduzido por alienígenas, luzinhas volta da
sua cabeça e o fígado escorregando da barriga e sendo devorado por gaivotas
grotescas pintadas sua volta. E por baixo desse fígado enlameado podemos ler
coisas como "Ermeni kan\u0131 +, Kürt istilas\u0131 + Yunan sabotaj\u0131 + kirli Arap
e\u015fekleri + Avrupa ak\u015famdan kalmas\u0131 = Amerikan rüyas\u0131", o que significa
algo como "Derramamento de sangue arménio + invasão curda + sabotagem grega + burros sujos
árabes + ressaca europeia = sonho americano", etc. E ao lado desse
retracto de Mustafá, está também uma doce imagem do Principezinho de Antoine de Saint-Exupéry, o principezinho com
um chapéu canudo (um fez) no topo da cabeça, seu rosto voltado para a lua, a crescente
islâmica, onde uma odalisca está empoleirada, mostrando seus seios a todas as
criaturas de baixo e de cima. E ao lado, Mohamed Ali passando a bordo de um
tapete voador com suas luvas de boxe pendendo do tapete, e uma chávena de chá
turco sendo servido além das estrelas.
Agora ouve-se um
som discordante vindo de lá dentro da cozinha, quer dizer, alguém está tocando
uma sanfona muito desafinada, parece, mas as meninas aqui sentadas no sofá
acham piada a esse toque, e fazem loops com as mãos rolando em volta da cabeça,
num estilo pseudo-arábico. E eu bato palmas tentando manter o ritmo, e elas
levantam-se sacudindo ombros, barriga e bunda mesmo ao meu lado, riem e choram,
movendo-se em semicírculos pelo corredor além, se abraçando, uivando e cantarolando
lamentos e insinuações, tropeçam, se empurram, e caem novamente no sofá, sem
graça. Eu, com o intuito de limpar um pouco o ambiente, dirijo-me s meninas,
decidido a apresentar-me e pergunto também os seus nomes. Mas elas respondem
com complexidade e sorrisos perturbados enquanto jogam a fumaça no meu rosto. A
loira de nariz comprido chama-se Djemile e tem sangue bósnio correndo-lhe nas
veias, conta, seus ancestrais lutaram contra os sérvios, cortaram a cabeça dos
infiéis. A outra, de olhos e cabelos mais escuros e peito farto chama-se
\u015ehebnem, nome de origem persa, que significa orvalho ou estrela da manhã, diz
ela. Depois querem elas saber o significado do meu nome, mas digo-lhes logo que
o meu nome não tem significado algum. \u201cSou uma pessoa sem sentido\u201d, digo-lhes,
mas elas não aceitam isso, exigem significados, então me perguntam o meu signo
astrológico. E eu digo-lhes que sou um género de cachorro na astrologia chinesa
e algum tipo de chimpanzé na astrologia australopiteca e elas franzem a testa.
A conversa segue nestes termos, mas não por muito tempo. Na outra extremidade
do corredor, há um quarto, dentro deste quarto estão Edje e Törünge, deitados
em um colchão instalado directamente no chão, concentrados no ecrã de um laptop
pousado aos seus pés, olhos bem abertos, as sombras das imagens provenientes do
ecrã sendo projectadas nas paredes em volta. Dizem que nos últimos dois, três,
cinco dias, eles não se movem dali, daquele quarto, assistindo a uma maratona
de thrillers psicológicos, tomando café e chá a toda a hora, e pouco mais.
Então, decido-me a engolir também uma capsula daquelas e vou deitar-me ao lado
deles.
O filme é-me familiar.
Laura Palmer está no meio da floresta com o namorado. E noite. Ela ri e ri
enquanto snifa algo e passa o pó na orelha do namorado e ele manda-a foder ou
coisa tal. Mas ela continua rindo, e cai mesmo para o lado de tanto rir. Agora,
ele aponta sua tocha para ela e depois para os galhos das árvores ao redor. Ela
continua rindo e ele manda-a fechar a boca, está apreensivo. Outra luz se
aproxima no meio dos arbustos. Um homem bigodudo com uma jaqueta de pele se avizinha
com uma tocha nas mãos. O casal se levanta, parece que estão esperando o homem
e o homem diz \u201cJacky-Jacky\u201d enquanto parece retirar algum tipo de embalagem de
baixo do seu casaco de peles. O rapaz ao lado de Laura Palmer aponta a tocha
para o pacote. Laura vai até o homem. O homem simula que vai entregar o pacote
para ela, mas de repente tira uma arma da sua cintura e aponta na direcção do
namorado de Laura, mas o rapaz é ainda mais rápido e atira o homem ao chão na
hora. Agora Laura grita e corre de um lado para o outro. Um segundo tiro
explode o cérebro do homem de bigode. Laura enuncia Deus em vão. \u201cBobby, o que
você fez?\u201d, grita ela. \u201cEu atirei nele, eu o apanhei\u201d, diz. Laura está
ofegante... O homem caído no chão com as costas voltadas para cima balbucia
palavras incompreensíveis. E o rapaz que o atirou abaixo, vai e volta, aparece
logo com umas ferramentas e diz para Laura, \u201cVenha aqui e me ajude\u201d, diz jogando
já baldes de terra sobre o cadáver ainda quente. Ela se aproxima e os dois
inspeccionam o cérebro despedaçado do homem caído, ainda resmungando. Ela fazendo
uma expressão confusa e triste e vaidosa ao mesmo tempo. E de repente, solta ela
uma risada e ele avança para ela e tenta cobrir-lhe a boca, o que não é fácil,
mas consegue. Depois diz a Laura para ajudá-lo a enterrar o corpo. E ela diz
que foi ele que matou Mike. E ele diz esse que não é Mike porra nenhuma. Com as
mãos, o rapaz cava terra em redor e continua atirando-a sobre o corpo. Ela
sorri e repete \u201cTu matou Mike\u201d, soltando gargalhadas outra vez. Então ele a
empurra, dizendo-lhe para calar a boca, novamente. Já na cena seguinte eles
estão correndo juntos através da floresta escura. A luz de sua tocha apontando
para os galhos superiores das árvores. E aqui no colchão, Edje sussurrando algo
na orelha de Törünge, ele a beija na cabeça e eu saio do quarto. As outras
meninas, Djêmile e \u015ehebnem, não estão mais no sofá do corredor, mas algumas
baronas tombaram do cinzeiro, e estão agora caídas numa das laterais do sofá\u2026 e
há algum fumo a sair dali\u2026
Na cozinha, a ucraniana
de lábios fininhos ainda abre e fecha a polaina do meu acordeão, os olhos estão
fechados, o som saindo dali é muito ténue, e sim, o instrumento está
completamente desafinado, arruinado, mas eu não o reclamo como meu. Avanço
antes para o fogão, e levanto já a tampa de uma panelinha, espreito lá para dentro
e cheiro, vejo uma espécie de macarrão com grão-de-bico, mas aquilo cheira um
pouco mal, talvez devido ao iogurte, já deve estar aqui há alguns dias, com
certeza. E eu faminto, abro agora a porta do frigorífico, mas não há quase nada
dentro, penas uns limões secos, molho de tomate rançoso, algumas ervas, um ovo
quebrado, e um pote de pickles. Pego o molho de tomate, jogo umas ervas dentro
e mergulho uns picles naquilo. Não me sabe mal, antes pelo contrário. A menina russa
continua abrindo e fechando o fole do instrumento, e podemos escutar, há peças
a chincalhar lá dentro, e eu ali, lambendo os pickles, olhando pro tecto e pra
ela, intervaladamente. Até que, ela abre os olhos, mostra-se um pouco
transtornada com a minha presença e pergunta o que estou fazendo ali/aqui. E eu
digo-lhe a verdade, ou seja, que estou comendo turshu e procurando Wally. E ela
me pergunta quem é Wally. E eu digo-lhe que Wally é Godot. E ela volta a
perguntar quem é Godot. E eu digo-lhe que Godot é Pierrot. E sem mais
perguntas, ela põe algumas folhas de maconha na minha mão, e eu saco imediatamente
uma carteira de papéis de seda do bolso e ponho-me logo a trabalhar. E pronto,
agora é a minha vez de perguntar quem é ela e o que está fazendo aqui. Diz
portanto que o seu nome é Olga e veio aqui porque é amiga do casal que está
deitado no outro quarto a ver a maratona de filmes. E eu aproveito a demanda
para perguntar a ela o que há de errado com eles. E como seria de esperar, ela
me diz que não há problema algum com eles, estão apenas se recuperando de um
acidente, ou coisa do género. E também me aconselha, a não os incomodar. Depois
levanta-se, atira a sanfona para um canto e move-se uns passos na direcção da
minúscula varanda. E eu sigo-a. E os gatos seguem-nos também. Olga pega num
deles e inspecciona-lhe a barriga e a cauda enquanto eu olho a paisagem em
redor. E como se estivéssemos num bairro decrépito de Nápoles, mas não. O tempo
está húmido e há um cheiro a madeira queimada entranhado no ar, mais as radiações
propagadas pelos muezins, e nós fumegando essas ervas, como que para nos
protegermos do clima em redor, e olhamos as poucas luzes ainda acesas no
labirinto de telhados e varandins, passamos o charuto um ao outro. E
entretanto, além, do outro lado, aparece uma senhora com um pano na cabeça
janela, prontamente joga um saco de lixo lá em baixo e volta a fechar a janela,
num estrondo. E numa varanda dum andar inferior, duas crianças lutam em
silêncio, rapariga e rapaz, ouvindo-se apenas a respiração ofegante de ambos,
até que um homem gordo se aproxima deles e as empurra para dentro de casa, aos
berros.
Passado um pouco, um
velho sai para a rua a discursar: "Ayshê, mutsuz orospu, Tanrê ashkêna,
Tanrê ashkêna, Ayshê, Tanrê a\u015fk\u0131na\u2026\u201d algo do género. A minha camarada diz que
que aquilo significa, \u201cAyshê -
sua vadia infeliz, pelo amor de deus, pelo amor de deus\u201d E uma voz feminina vem
agora janela, trata-se da resposta de Ayshâ certamente, \u201cSessiz, sen aptal,
sen çürük, salak\u201d. O que quer dizer algo como \u201cEsteja calado, seu estúpido, seu
podre, seu idiota", a que ele responde do seguinte modo \u201cEve gel, seni piç
orospu\u201d. Então \u201cEv\u201d quer dizer casa. \u201cGel\u201d quer dizer voltar. \u201cSeni\u201d é um
articulo referente a \u201cTu\u201d. \u201cPiç\u201d quer dizer desgraçada/o, já que em turco a
distinção de género masculino / feminino praticamente não existe, e \u201cOrospu\u201d, pode
querer dizer cadela, vadia ou puta. No entanto, ficamos a discutir janela as
origens desta palavra, que eu pensava significar rainha. Pergunto-lhe se na sua
língua também é assim, o sentido de prostituta pode também significar cadela ou
vadia, e ela confirma. No dia seguinte, eu e a minha amiga levantamo-nos tarde
e vamos juntos ao \u201cKumushu café\u201d, Komshu significa vizinhança, ou vizinho.
Trata-se de um café artístico, aqui no lado alto do bairro, em Kad\u0131köy. \u201cKomshu\u201d
é um café criado por ex-refugiados Sírios, um sítio mais ou menos alternativo,
aberto aos estrangeiros, tanto os refugiados como os vários tipos de viajantes
neo-hippies e coisa tal. Mas nós viemos aqui para comer. Podemos comer aqui de
graça. Dizemos Merhaba queles que estão por aí vagando pela cozinha / bar /
sala de estar. Nós pegando logo em pratos vazios, escolhendo a comida das
travessas disponíveis. Eu tiro um pouco de arroz com tâmaras e cenouras, um
pouco de iogurte rosa e beringela frita. Olga pega nacos enormes de queijo
branco salgado, beyaz peynir, rega-os com um pouco de curry picante e junta
duas bolas amareladas ao lado, o que parece ser falafel vegano. Sentamo-nos a
um canto, a emborcar... Estranhos conversando em redor. Mas nós não estamos
prestando muita atenção, temos fome. A música que sai dos alto-falantes por
trás da estante de livros, é uma espécie de som árabe chinês com ritmos latinos.
E dá para classificar, há dois grupos de pessoas diferentes conversando aqui
agora, um junto ao bar, os falantes de inglês (australianos, europeus da europa central) falando besteiras sobre suas viagens pela
Turquia, o típico discurso bacoco sobre as ruínas gregas perto de Izmir,
Chanakkale, Bodrum e os templos sufis em Konya e o túmulo de Rumi e os lagos
salgados de Pamukkale, Antalya etc. Depois entram na Turquia oriental, e
perdem-se na conversa. São hippies vindos de famílias endinheiradas, mas
vestido como se vivessem na rua. Fala-se ainda sobre as montanhas Taurus, a
fronteira com o Irão, etc ital.
O outro grupo,
sentados em torno de algumas mesas não muito longe de mim, fala em francês. Os
franceses sempre mais conscientes, falando de política do Oriente Médio, das
questões da guerra na fronteira sul com a Síria, a guerrilha Curda e os campos
de refugiados sírios. E parece que um dos palestrantes desta mesa está fazendo
um documentário sobre os refugiados Sírios ao redor do mundo. Ele os tem
perseguido e filmado em vários países do médio oriente e europa, como Suécia,
Alemanha, França, Grécia, Líbano e agora na Turquia. Um documentário sobre
refugiados de guerra, uma boa desculpa para fazer de turista new-age por esse
mundo fora, confeccionando arte a partir da miséria dos outros. Estilo bem francês.
Pois bem, o menino de jaqueta de couro, cabelos pastosos e pele rosada diz que
o grupo de refugiados que filmou na Suécia, estão muito felizes de estar lá. A
Suécia seria destino dos seus sonhos. Alguns deles atravessaram todo o Oriente
Médio e Europa a pé para chegar lá, eles têm histórias surreais de
sobrevivência para contar ao mundo. Mas parece que alguns deles não amam a
neve, nem o frio e aquele jeito nórdico de ser, pessoas com sentimentos
anestesiados, dizem. O rapaz dos cabelos pastosos conta a história de um rapaz que
entrevistou lá, um rapaz que estudava inglês e cultura americana sozinho, diz
que o filmou em seu dormitório, todas as paredes do quarto cobertas de pósteres
de filmes do far-west etc. Seu sonho era ir para as terras do sul da América e tornar-se
cowboy. Ele poderia simular o sotaque de uma pessoa do Texas, de Arkansas, de
Montana ou de Louisiana e sabia detalhes sobre todas essas vedetas do sul como
a Pamela Anderson, o Elvis, o Kanye West, o Hulk Hogan, a Julia Roberts, a
Beyoncé, o Johnny Depp, a Sandra Bullock, o Morgan Freeman, o Justin Timberlake
e especialmente, a Britney Spears, que fiquei a saber, é original do
Mississippi. E entretanto, aproveitando a debanda, algumas pessoas na mesa
começam logo a falar sobre a identidade de Britney Spears, e sobre as notícias
da sua estadia no hospital psicológico. Mas o rapaz de cabelos pastosos não dá
ouvidos a esses comentários, dá antes
seguimento conversa sobre os refugiados que filmou na Alemanha,
famílias inteiras pedindo dinheiro na rua, colocados nos acessos a
auto-estradas, nos subúrbios de grandes cidades como Berlim, Frankfurt ou
Hannover. Diz ainda ter filmado algumas crianças sírias em escolas mistas,
aprendendo alemão, essas crianças sendo discriminadas pelos filhos de
imigrantes turcos. E contínua nesses modos, por ai fora. Na França, diz que
filmou numa associação para jovens sem abrigo. Os jovens Sírios iriam nesta associação
perto da gare do Nord, em Paris, para tomar gratuitamente o pequeno-almoço e aí
se encontrariam com outros fugitivos, principalmente Afegãos e Paquistaneses, esses
que terão atravessado todo o Irão e entrado na Turquia escapando pelas
montanhas em pequenas vans, e depois a Grécia e o resto da Europa. Quer dizer,
tanto os Sírios quanto os Paquistaneses e Afegãos amavam a Grécia, pois era lá,
diziam ele, que ficava o palácio onde a maioria poderia fazer os seus
documentos para entrarem na Europa dos ricos. Eles gabavam o povo grego, que
não os criticavam em nada, mas os Arménios e Indianos eles não gostavam muito.
Principalmente os Indianos,
eles os achavam pessoas estúpidas interessadas apenas em dinheiro. Sobre os refugiados
Sírios no Líbano, seriam 25% da população, ou mais. Foram filmados alguns acampamentos
nos subúrbios de Beirute também, onde muita miséria foi registrada, e desses
acampamentos saltaria a conversa para as \u201cfavelas\u201d do Brasil.
Começou-se então a falar sobre
um famoso grafiteiro do Brasil que tinha pintado as paredes de Gaza, em Beirute
ou Kobane, na Turquia. E da cidade sitiada de Kobane, palavra puxa palavra e eles
saltam para os Nirvana, Kurt Cobain e afins\u2026 Então, chegados a este ponto, aqueles
que estavam sentados no bar, ou seja, os falantes de inglês, decidem entrar na
conversa dos vizinhos sentados mesa, sorrisos esquisitos circulando, tudo por
esta curiosa relação fonético, Kurt Cobain, o cantante, a vedete, o mártire, e
Kobane, a cidade do inferno na fronteira com a Síria. Risos de morte, eu diria.
Mas os falantes de inglês afirmam terem visitado algumas cidades do sul perto
da fronteira com a Síria e dizem não ter
ouvido nenhum tiro ou explosão por lá, os sortudos, nenhum sinal de guerra, e
mais acrescentam que as meninas curdas são muito simpáticas, têm a mente
aberta, falam inglês e até, prestam serviço militar como homens e têm
sobrancelhas como os latinos e cabelos escuros como os persas e sabem praguejar
em árabe, turco e russo até. E é precisamente neste momento que alguns barbudos
aproximam a mesa, os responsáveis por este café, e mandam todo mundo subir ao
andar de cima, porque vai começar um espectáculo. E quase todos obedecem s
palavras dos turcomanos, fazendo expressões idiotas. E eu também, levanto-me e
vou lavar o meu prato e talheres, enquanto troco algumas palavras com os
voluntários em redor, que logo me oferecem um copo de vinho quente. Pego o copo
e venho cá para fora, para mirar quem está entrada a oferecer cigarros. Mas
cá fora está apenas uma menina sentada na única mesa do exterior, e ela não tem
cigarros a mais, mas me passa o cigarro que ela mesmo estava fumando, a gente
divide. Então, ofereço também a minha taça de vinho, ela bebe um gole, e
pergunto se ela não vai lá para cima para ver a performance / concerto, ou o
que é. Ela diz que não. Diz que está cansada de artistas, hippies e gazetistas,
e chama todos uma corja de paparazzi, algo do género. E mais, do nada me
confidência que ela mesmo é de origem curda e seu nome significa Rosa Selvagem.
Mas isto não é tudo. Sem papas na língua, diz logo que gosta de algo no meu
movimento, e diz ainda sem rodeios que eu não sou como os outros lá dentro e
que... O que ela quer mesmo é ler o meu futuro nas cartas e... Sim, é isso, ela
é uma espécie de tarô. E eu aceno a minha cabeça para cima e para baixo, meio
sorrindo, meio abalado.
De repente,
a magana espalha as cartas sobre a mesa de madeira pede me logo para escolher
quatro cartas e fazer uma pergunta. E eu ainda estou a sentar-me, de frente pra
ela. Nosso vinho acabou e eu agora bebo do seu café. Bem, com alguma reticência
faço a minha escolha, levanto as quatro cartas e estou a pensar numa questão.
Depois tenho já uma pergunta em mente e digo-lhe enquanto entrego as quatro
cartas. "O que é que eu estou eu aqui a fazer?" é essa a questão. E ela
coloca as quatro cartas no meio da mesa, tocando-as, reorganizando-as, olhando
para elas e olhando para mi intervaladamente. Eu vejo as cartas. E o clássico
pacote da Marselhesa. Eu sei algo sobre seu significado. Duas deles não são
importantes, vejo logo, são apenas números: o três de moedas e cinco de copas.
Números ímpares de qualquer maneira. As outras duas cartas são a roda e a
torre. Um representa claramente o movimento, a mudança, as viagens. A outra
representa a conquista e a ruína ao mesmo tempo, coisas que se aprendem quando
se tem amigos com gostos pelo oculto. \u201cVejo que vieste aqui não apenas para
viajar, alguma força maior te empurrou para aqui, não apenas a tua intenção, mas,
talvez uma mulher, talvez um sonho, talvez algum negócio peculiar, talvez a
dor. Vejo que já tentas-te ir mais longe, mas não conseguiste\u2026 De alguma
maneira, está preso a esta região\u2026 encontraste vínculos com este país, com esta
terra. De qualquer forma, parece-me que que já conquistas-te parte do teu
sonho, mas ainda não consegues os lucros. Estás tombando aos poucos, mas não te
preocupes, estás em casa, não te vais machucar muito na aterrissagem\u2026 uma cama
de penas está sendo preparada para ti e... o cinco de copas significa família\u201d
diz ela cheia de importância na sua expressão, nossos olhos se tocando.
Depois afasta ela as quatro cartas já interpretadas, vai
misturando as outras, e pede-me, mais uma vez, para fazer o mesmo de antes.
Então, escolho mais quatro cartas e faço uma nova pergunta. "Quem és
tu?" é a minha pergunta, desta vez. E ela olha para mim, olha o fundo da
rua, com um pequeno sorriso nas bordas dos lábios, e olha novamente as cartas
escolhidas. Três cartas não são importantes e a outra, curiosamente, é o mundo.
\u201cComo estás a ver, eu sou tudo que tu quiseres ouvir e tudo aquilo que quiseres
esconder também, eu sou tudo, sem nunca ter saído daqui, sou volátil e não
tenho consciência, durmo e acordo o tempo todo, não amo tanto a humanidade,
prefiro o cosmos. Nisso sou igual a ti. Alias, podes ver as minhas cicatrizes,
já tentei o suicídio várias vezes, mas nunca deu certo, mas isso foi há muito
tempo\u201d. E eu vejo as cicatrizes em seus pulsos, e isso me assusta um pouco,
porque é real. Eu já tinha percebido algo invulgar na pele do seu pulso, mas
não quis dizer nada, agora ela me mostra o que meus olhos queriam ignorar. E assim
vai o mundo, escolho novo grupo de cartas e faço mais uma pergunta. "O que
é felicidade?" As cartas desta vez são talvez de interpretação um pouco
mais complicada. Não entendo a relação entre todas elas. São elas o
\u201cjulgamento\u201d, o \u201cdiabo\u201d, a \u201cjustiça\u201d e o símbolo do infinito com flores
vermelhas nas bordas. Ela olha para as cartas, olha o céu e começa a falar algo
para ela mesma, enquanto passam transeuntes na rua olhando para nós com um ar
inquisitivo. E ela avança, \u201cA felicidade não é importante, o que importa mesmo
é\u2026 uma pessoa ser verdadeira consigo mesmo, o diabo está sempre atento, ou
seja, cada pequena acção é importante, estamos mudando o mundo agora mesmo,
nossas palavras serão medidas não só no paraíso e no inferno, mas nos sete
céus. Do mal você pode fazer o bem. E claro, aquilo que tu não compreende, terá
sempre mais força do que tudo aquilo que você pode compreender\u201d. Tudo isto é
dito com muita fluência por parte dela, e eu estou de veras fascinado, não
apenas pelo sentido do discurso em si, mas pela força que ela colocava nas
palavras e nos silêncios. E realmente uma artista a trabalhar com as cartas, e dá
a entender que eu estou mesmo pegando as cartas que ela quer interpretar, ou
então, estou a ser bem intrujado. E avançamos. Desta vez levo mais tempo a
escolher as cartas, puxando-as e devolvendo-as e escolhendo outras. Até que
finalmente tomo a minha decisão. \u201cO que é liberdade?\u201d.
As cartas são a rainha de
ouros, o carrasco, a lua e uma carta não importante, mais um número. Ela
avança. \u201cA liberdade está em nosso sangue, mas o sangue não vem de nós, o
sangue vem da lua, ou melhor das luas. Somos livres quando conseguimos ver o
que está fora de nós. Somos livres quando não pensamos. Somos livres quando
viajamos. Mas claro, com pequenas coisas não quero dizer algo pequeno no
tamanho, mas já agora, falando em pequeno, olhemos por exemplo as formigas, são
elas livres? Elas trabalham o tempo todo, s vezes perdem-se, outras vezes a
gente passa por cima delas e as pisa, mas a liberdade é ouro\u2026 A liberdade não
se interessa por relações conjugais, ou extraconjugais, tu deves escolher a
vida, ou talvez gostes de ver tudo do lado contrário e meter sempre por
caminhos mais difíceis, mas s vezes é bom estar alerta, com os pés no chão, e pegar
mesmo o que está nossa frente \u201d. E assim, enquanto ela termina com essas
novas palavras de humor, minhas pernas tocam suas pernas por baixo da mesa. E ela
não as afasta, pelo contrário, parece que se está aproximando ainda mais de
mim. E eu pego novas cartas. O jogo tem de continuar. "O que queres tu de
mim?" é a minha questão de agora, mas desta vez, eu não pego cinco cartas,
eu pego apenas uma carta e, a carta que sai, é a aquela que representa as
estrelas, ou seja, uma mulher loira nua despejando o líquido de dois potes em
um lago. Numa mão, um jarro amarelo contém água branca e noutra, um jarro
vermelho contém água azulada. Fico a olhar para isto e a pensar. Agua contra
água! Ora essa! Preciso da ajuda do público. Digam vocês o que é que isto pode
significar!?
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